Um trecho do livro que estou escrevendo:
Havia um escritor famoso muito peculiar no país. Famoso porque era o comediante menos engraçado de um grupo de artistas sem graça, e peculiar porque ninguém poderia afirmar que ele realmente sabia escrever. Fazia parte daqueles pseudo-comunistas que acreditam na religião de que, em um país com comunismo real, todos andarão de Ferrari ou Lamborghini (a gosto do proletário em questão) — totalmente diferente do “falso” comunismo da antiga U.R.S.S., aquele comunismo para burguês ver! De qualquer maneira, enquanto esse comunismo real não se manifestasse, ele trataria de viver da melhor maneira que o capitalismo permitisse. E ai de quem o chamasse de comunista! Notem que nunca o chamei de comunista.
Seus textos, além de publicados em livro, apareciam em livros escolares e em jornais que ninguém lia. Para tentar manter-se em destaque e fazer com que alguém o lesse, usava do expediente de criar uma polêmica. Cheguei a conhecê-lo por um texto seu sobre Jesus Cristo, o que nos indica que sua estratégia, até um certo ponto, funciona. Por este mesmo motivo meditei se deveria ou não falar de tal autor em meu livro. Se me decidi por publicar esta história, é porque, por um lado, ela serve como ilustração da vida intelectual do país e, por outro, serve como uma dica que, para certas polêmicas, o ideal é esquecer ou falar o mínimo necessário. Um pouco de contexto deve ajudar a explicar o ocorrido, o mínimo necessário.
Como eu disse no início do texto, ele fazia parte de um grupo de comédia. Este grupo publicou no Netflix um especial de natal em que Jesus Cristo — interpretado pelo próprio escritor em questão — era homossexual, tinha mãe adúltera etc. A população, cristã em sua maioria, ficou obviamente irritada com o ocorrido. O correto a se fazer nesse caso era cancelar a assinatura do provedor de séries e filmes e, para as instituições religiosas diretamente afetadas pela comédia, um processo contra os responsáveis. Houve uma corrida para se criar um abaixo-assinado com o intuito de remover o programa da grade da Netflix. Vergonhoso.
Não assisti ao programa, já não assino mais à Netflix, mas vi fotos online e senti um pouco de forçação de barra. Estranhamente, voltou à minha memória um fato da época em que eu era adolescente, quando conheci outros adolescentes, moradores de um prédio de luxo que furtavam abacaxis de uns caminhões estacionados na propriedade: meninos ricos e mimados com altas capacidades materiais para fazer o bem, mas que, por despeito e raiva de algo sem nome para eles, escolhiam provocar o mal. Aos seus olhos de jovens rebeldes contra a hipocrisia do mundo, eram aceitos como iguais e verdadeiros, afastando todos que fossem diferentes — vistos como fracos e burros.
Escolhiam sempre tomar a porta dos fundos.